Adelaide Amorim
Eu sou, tu és, ele é. Às vezes duvidamos, mas somos todos. Sois, assim como eles são. O que, afinal? Além de gente – bípedes implumes, sem asas nem córneos bicos – essas figuras de origem biológica clara – ou quase – e metafisicamente obscura. Dizem alguns entendidos que nem existe mais metafísica. Isso arranca as pretensões mais petulantes de nossas árvores genealógicas em suas raízes últimas (ou primeiras, dependendo de se você vai de cá pra lá ou vem de lá pra cá) e impiedosamente nos põe em pé de igualdade.
Já ouço o alarido dos protestos. São na certa senhoras da mais antiga aristocracia rural, cavalheiros formados em Harvard, gente com antepassados ilustres de nossa história e até pessoas simples, legalistas, conservadores, seres medianos sem culpa no cartório que não podem admitir ser postos em pé de igualdade com gentinha da classe D. Sem falar em cintilantes emergentes carregando seus pets perfumados, seguidas de maridos algo embaraçados pela atitude beligerante das consortes.
A verdade é que somos. Não adiante espernear: viemos todos do mesmo buraco, da ameba original, da água e da célula primeva. A partir daí tiveram início evoluções e equívocos em desenfreada corrida. Parece que a sentença do Éden foi mais ou menos assim: "Do caos viestes, para o caos retornareis", e desde então homens e mulheres se empenham em construir para destruir, mentir para si mesmos, proteger para abandonar, amar à beira do ódio – não necessariamente nessa ordem, mas invariavelmente e em todos os tempos e lugares. Às vezes a própria construção já começa sem qualquer prognóstico favorável, como aconteceu com a torre de Babel e os prédios do Sérgio Naya.
Espécime ambíguo e pouco confiável que é o ser humano. Investimos recursos incomensuráveis para fazer a guerra – que é o jeito oficial e socialmente aprovado de dar vazão à fera que vive em nós; alguns apostam a vida no jogo da violência sem lei; outros usam a lei para arquitetar golpes milionários, enquanto falta o mínimo para que tantos possam viver com decência. Quantas maneiras existem de matar?
Parece bem verdadeiro que o coração não se perturba com o que os olhos não vêem. As equipes econômicas trabalham com abstrações e eternos métodos de ensaio-e-erro, dando seu jeito de fugir ao óbvio com o ar de quem sabe tudo. Seus saberes passam ao largo das necessidades primárias de dar de comer a quem tem fome ou permitir uma vida digna a todas as camadas da sociedade, pretensão de pobres de espírito. Interesses mais altos se alevantam, e além disso existe esse ser metafórico e mutante a que chamam mercado – álibi perfeito utilizado para preservar a ganância dos mais fortes. Enquanto isso, a gente cria programas de nomes tocantes e quase inócuos, campanhas fugazes de efeito, e abraça o Pão de Açúcar invocando a paz. Como se a paz fosse um orixá e não um estado de espírito. Ou então desloca a atenção para outros temas, como a auto-estima, novos modelos de bonés ou a brincadeira de berlinda dos comissários do governo.
Mas afinal, quem somos? Será que von Trier foi pessimista demais quando construiu sua Dogville?